Um espectro ronda o planeta
Por Vinícius Romanini*
Aos poucos começamos a compreender que a pandemia do coronavírus não é apenas uma emergência sanitária em escala global capaz de produzir milhares de mortos. Não é como um tsunami, o vazamento de um reator nuclear ou um terremoto de grandes proporções, eventos dramáticos que experimentamos no passado recente mas que não tiveram o poder disruptivo de um vírus e que se espalha exponencialmente em escala planetária. Não é, portanto, uma tragédia que pode ser lidada com os mesmos mecanismos institucionais e políticas públicas orientadas por sistemas políticos desenvolvidos a partir da Segunda Guerra Mundial e que, no Ocidente, foram voltados para a globalização dos mercados, a maximização dos lucros das empresas e a minimização do papel no estado na vida social.
É um evento com o potencial de reconfigurar a maneira como pensamos e agimos num nível profundo, o das mentalidades, e que talvez só tenha paralelo nos períodos dramáticos em que impérios caem e civilizações desaparecem. O coronavírus arrancou a cortina do palco em que políticos-atores bufões, muito mais próximos de comediantes de standups do que de estadistas a altura dos cargos que ocupam, passam a maior parte do tempo em ações diversionistas nas redes sociais, jogando para uma plateia. Um número cada vez maior de pessoas fragilizadas e abandonadas à própria sorte enquanto uma sempre menor número de super-ricos concentra riqueza e poder político em taxas tão exponenciais quanto a difusão da pandemia.
O coronavírus é como um dedo invisível que leva um sistema desequilibrado a uma catástrofe inexorável, a uma violenta transição de fase - como descreve a teoria dos sistemas dinâmicos distantes do equilíbrio. O caos que vivemos já é palpável, entrou definitivamente em nossas vidas e não adianta chorar nem espernear. Não adiantam "fake news" tentando jogar fumaça cênica para encobrir que o rei está não apenas nu, mas foi pego na orgia despudorada com aqueles que dependem da miséria da maioria para gozar a vida no luxo dos condomínios murados. Não adianta gritar das janelas dos SUVs importados, em carreadas serpenteando pelas avenidas das metrópoles vazias pelo terror da morte, em buzinaços desesperados dos que viram suas ações no mercado financeiro vivarem pó, e seus investimentos em franquias nos shopping-centers fadados à falência.
O planeta já passara do ponto de não retorno em diversos quesitos ambientais, mas nenhum deles possuía uma relação de causa-efeito tão evidente como a de um vírus que escapa de animais silvestres caçados para o consumo no que restou de áreas de conservação da China. A teoria da" tragédia dos comuns" preconiza que a consciência sobre o efeito danoso das nossas ações não se desenvolve se os efeitos forem distribuídos e sentidos apenas muito tardiamente. Com o coronavírus, a relação de causaefeito é quase imediata. Toque uma maçaneta contaminada ou aperte a mão de um contagiado e você adoecerá em poucos dias. Boris Johnson, o primeiro-ministro britânico, pagou para ver e se deu mal. Teve que inverter o discurso diante das evidências de uma tragédia nacional que acometia igualmente o príncipe e os plebeus. Não há espaço para retórica vazia ou teorias da conspiração que afirmem que o vírus não é real, que as pessoas morrem por outras causas que não a insuficiência respiratória provocada por esse patogênico. O vírus não é chinês, ele é natural e é de cada um de nós. É o resultado da exploração incauta e irrefreada dos recursos da natureza, é uma espécie de Nêmesis que não vem bradando na forma de um asteroide gigante mas sussurrando um terrível segredo que passa de boca em boca, e cuja verdade não pode mais ser negada.
O coronavírus não cabe na caixinha dos modelos vigentes voltados para acumulação do capital, sejam eles neoliberais ou centrados em estados que exercem controle social rígido. A racionalidade técnica dos gestores públicos treinados para manter o sistema funcionando em modo acelerado de produção e circulação de bens de consumo, do oferecimento de serviços em plataformas digitais globalizadas, dos organismos internacionais submetidos à lógica da eficiência econômica, dos governantes eleitos com o dinheiro dos lobistas do mercado financeiro e da indústria bélica, nada disso poderá evitar os efeitos do confinamento compulsório de um terço da população mundial, do fim dos meios de sustento para milhões de trabalhadores informais ou extremamente precários gerados pelo sistema neoliberal que coordenou as políticas econômicas nas duas últimas décadas. Haverá comoção pública, revolta com a incapacidade dos governantes de agir diante da crise, indignação com o cinismo diante dos corpos que se amontoam. E, em algum momento, tomaremos consciência de que é preciso sair das plataformas digitais e reorganizar nossas vidas em torno do que realmente faz sentido: a comunidade dos seres humanos em todos os níveis, do local ao planetário.
Em poucas semanas, as certezas e confianças no sistema vigente foram derretendo. Basta observar Donald Trump, o presidente dos EUA antes negacionista e resistente a tomar medidas drásticas, em poucos dias abrindo os cofres do tesouro americano, intervindo diretamente nas forças produtivas e defendendo a necessidade de isolamento compulsório de regiões o mesmo estados inteiros. Hoje temos muito mais dúvidas sobre como agir e o que esperar no futuro próximo do que certezas sobre o sucesso das medidas que estão sendo tomadas. De repente, a ciência e os cientistas começam a aparecer mais do que a bíblia e seus pastores. Os jornalistas começam a ser mais ouvidos do que os pilantras que geram fake news a partir dos gabinetes do ódio. Se, como Umberto Eco dissera antes de nos abandonar, a internet organizou a imbecilidade, talvez agora possa também organizar o que nos restou de sabedoria para unir forças e buscar novos caminhos.
O fato é que os passos que daremos agora não nos permitirá retornar ao mundo que ficou para trás. A maneira como lidaremos com a tragédia que se anuncia nos próximos meses mudará para sempre nossa civilização, para melhor ou para muito pior. Discursos dogmáticos, aventuras autoritárias, teimosias insustentáveis diante das evidências, ilusões de um retorno à normalidade que nunca foi normal, nada disso nos permitirá sobreviver ao que se anuncia. A razoabilidade crítica, a capacidade de unir mentes e buscar ideias criativas sempre, a solidariedade em torno de propósitos mais nobres e gerais do que o individualismo cínico - é isto que se espera. Vamos precisar de novos líderes, de novas soluções, de novas narrativas ideológicas, de novas utopias. O espectro que nos ronda pode ser apenas o da pandemia, seguido por uma tentativa canhestra de retorno ao mundo que ficou para trás, ou então uma nova onda de auto-organização social, de economia solidária, de distribuição de renda e maior acesso a oportunidades para os que sobreviveram à pandemia.
O remédio está sendo amargo, mas nada pior do que tomá-lo e não aprender que a vida vale mais do temos feito dela até aqui.
Autor: *Vinícius Romanini é professor da ECA-USP. Autor de diversos artigos e livros.
*Texto publicado originalmente em: Boletim FiloCzar, Ano II, n. 2, Março 2020. Especial Coronavírus.