Dennis de Oliveira (*)
Os fatos dos dias 3 e 4 de março incluíram o Brasil no rol dos países latino-americanos que estão sendo submetidos a uma nova forma de golpe. Não são mais ações protagonizadas pelas Forças Armadas como era comum no século passado. Agora as ações golpistas se travestem de “legalidade” e são protagonizadas por instituições civis do próprio Estado, como órgãos do judiciário e da polícia, e instrumentalizadas pelos meios de comunicação de massa.
Foi o que aconteceu na Venezuela em 11 de abril de 2002 em que os meios de comunicação locais e os grandes empresários deram um golpe que derrubou o então presidente Hugo Chavez. O golpe durou menos de 72 horas.
Em 2009, o presidente de Honduras, Manuel Zelaya, foi detido pelas Forças Armadas a pedido do Supremo Tribunal local e foi expatriado para a Costa Rica, numa afronta ao artigo 102 da Constituição local.
Depois o golpe contra o presidente paraguaio Fernando Lugo, que foi destituído em um suposto processo de impeachment (portanto, uma ação travestida de “legalidade”). O julgamento do então presidente durou apenas três dias, um rito com uma velocidade nunca existente em qualquer processo deste tipo. Isto foi em 2012.
Dois atores sempre presentes nestas ações: judiciário e mídia. Nota-se assim que os golpes do século XXI têm uma preocupação de dar um caráter de legalidade, ao contrário das quarteladas militares como a de 1964, no Brasil; e a de 1973, no Chile. Naquele período, vivia-se o auge da Guerra Fria, e o discurso anticomunista tinha tal força que justificava qualquer interrupção na ordem institucional.
Com o fim da Guerra Fria, embora este discurso anticomunista ainda perdure entre certos setores, a direita busca se legitimar na narrativa “moralista”. Por isto, os argumentos destes golpes e tentativas de golpes recentes é que os ocupantes de cargos cometeram atos infracionais. Protagonizaram escândalos. Em geral, de corrupção.
O que tem mobilizado estas aventuras golpistas recentes não é a moralização do Estado. A corrupção, como bem diz o sociólogo Jessé de Souza, serve apenas como reserva argumentativa para a direita legitimar suas ações. Os julgamentos de casos de corrupção são seletivos. Investigam-se e se punem apenas políticos de determinado espectro político. Mais: reformas estruturais que poderiam reduzir as relações promíscuas entre Estado e capital não são apoiadas pela maioria dos paladinos da moralidade. Exemplo: o fim do financiamento privado das campanhas. E também a proibição de que empresas patrocinem eventos de associações de magistrados.
Este discurso moralista encontra guarida em dois setores importantes: o judiciário e a mídia. Dois setores que tem uma ação pública, poder (de coerção e de condenação “moral”) e nenhum controle social. O judiciário se organiza como uma ‘casta aristocrática”, pretensamente legitimada pela meritocracia, entretanto, submetida a tribunais superiores cujas indicações são feitas de forma política. A vitaliciedade e a total falta de controle social por parte da população dá a este poder um ar de “nobreza” que se expressa, por exemplo, em comportamentos autoritários de alguns dos seus integrantes.
A mídia brada pela defesa da liberdade de expressão, mas quase toda foi favorável aos golpes militares na América Latina no século passado. Com as dificuldades que vem sofrendo por conta da mudança do panorama de negócios neste setor, opta pela sua sobrevivência articulando-se com os segmentos mais conservadores. Constrói uma narrativa junto a opinião pública que a “grande contradição” social no continente é entre “políticos” (corruptos) e “cidadãos” (contribuintes). Fortalece, assim, com este discurso as teorias do Estado mínimo, da desregulamentação das relações de trabalho e outras, que favorecem as grandes corporações do capital.
Assim, temos neste período curto de vigência das democracias nos países da América Latina dois poderes que são imunes ao controle social e, portanto, puderam ficar ao largo de uma sociedade civil que cada vez mais foi incorporada com segmentos sociais historicamente excluídos e que aos poucos foi ganhando consciência e ampliando suas reinvidicações. Negras e negros, indígenas, mulheres, camponeses sem terra, trabalhadores, jovens da periferia foram se fortalecendo como novos atores políticos, construindo seus protagonismos midiáticos próprios pelas redes sociais e, assim, pressionando os poderes que tem mecanismos de controle social. Os cargos eletivos do poder executivo e legislativo passaram a ser contaminados com estas demandas. É isto e não outra coisa que incomodou e incomoda uma elite acostumada a se locupletar na Casa Grande e querer resolver as demandas da senzala na ótica de favores pontuais que não põe em risco os seus privilégios.
Não é a corrupção que está em jogo. É o reposicionamento das nações da América Latina no cenário geopolítico mundial feito, com variações, por vários destes governos que foram alvos de golpes ou tentativas de golpe. São as políticas de inclusão social que, mesmo limitadas e pontuais, trouxe ao cenário político a pauta do enfrentamento da desigualdade. É o cenário político que se construiu com a presença de negras e negros, indígenas, mulheres, trabalhadores, jovens da periferia que passaram a ampliar o escopo do debate público para além das necessidades do capital, embora estas continuam ainda hegemonizando as ações governamentais.
Enfim, o que está em jogo efetivamente, são as jovens democracias ainda não consolidadas nos países latino-americanos.
(*) Professor livre-docente em Jornalismo, Informação e Sociedade pela ECA/USP. Chefe do Departamento de Jornalismo e Editoração da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (CJE/ECA/USP) e Coordenador Científico do Centro de Estudos Latino-Americanos sobre Cultura e Comunicação (CELACC/ECA/USP).